terça-feira, julho 8Notícias do Brasil e do Mundo, 24h por dia
Shadow

‘Entre o céu e o pé no chão’ traça em nove canções uma travessia serena e luminosa, celebrando passado, presente e futuro

A sabedoria dos recomeços sob o sol da maturidade

Quinto disco de Pedro Mann, ‘Entre o céu e o pé no chão’ traça em nove canções uma travessia serena e luminosa, celebrando passado, presente e futuro

Leonardo Lichote

“Lá vou eu de novo” — o verso vem embalado por Pedro Mann num sorriso que não se vê mas que se intui no canto. Está ali, portanto, em seus primeiros segundos, já na abertura, a alma do novo álbum do compositor, “Entre o céu e o pé no chão”. Uma alma solar e serena — em tons quentes porém claros, sem saturação. Se um disco é o retrato de um momento do artista, este se revela já na foto da capa: o rosto de perfil, a expressão tranquila iluminada pela luz do sol matinal.

O quinto disco da trajetória do compositor, cantor e baixista é, em suas palavras, um gesto de maturidade. “Chegou um momento, há uns dois anos, em que eu falei: ‘Acho que já tenho aí uma cesta de canções que pode virar um disco’. E cheguei à conclusão de que era um disco que representa uma maturidade”. Essa constatação aponta não para um fim, mas sim um reinício. “Lá vou eu de novo”, a canção que abre o álbum — e que lhe dá o tom — carrega esse sentido: recomeçar com lucidez, seguir em frente sem ilusões nem amargura. “Eu tô um pouco assim, sem muitas ilusões. Mais pé no chão”, diz Mann.

“Entre o céu e o pé no chão” é o primeiro disco em que Mann cuidou de todas as etapas do processo: do financiamento à masterização. É também o mais colaborativo — são mais de 25 músicos convidados, incluindo cordas e sopros. Todas as canções são suas, só ou com os parceiros Gabriel Pondé, Beto Landau, André Gardel e Marcos Carvalheiro. O álbum soa coeso em meio a essa variedade de olhares, orbitando em torno da beleza e do equilíbrio — estados aos quais o disco aspira. “Tem um lugar de vulnerabilidade, de colar com os meus e celebrar com os meus”, sintetiza Mann.

Se há um verso que carrega esse espírito, talvez seja o que pulsa no núcleo de “O sol continua a brilhar”: “A tristeza e a alegria navegam na mesma baía”. Não é apenas um achado poético — é o norte espiritual da travessia. “Tenho estudado muito meditação, não-dualidade”, conta Mann. “Quero escrever músicas assim. Gosto quando ouço uma música que me fala isso: ‘Fica relax aí, brother, tá tudo certo. Amanhã o sol nasce de novo’”.

Nesse movimento de aceitação do que vem, as canções se agrupam sem uma tese rígida, mas com uma ideia nítida em sua maleabilidade. “Não é que eu tô dividido. O disco não é de alguém dividido. O disco é íntegro. Sou eu e Deus. Tô aqui entre o céu e o pé no chão. Eu e minhas armas”. A integridade vem do mergulho em cada momento.

“O amor nasceu mulher”, por exemplo, foi composta com Pondé no dia em que Mann soube que sua mãe teria que operar de um câncer e que a filha de um amigo tinha acabado de nascer. “Foi um dia muito marcante. É uma canção que celebra isso, a ancestralidade, todas as mulheres que fazem o mundo. É muito forte, a melhor do disco pra mim”.

A canção que batiza o álbum também estava pronta há anos, mas voltou ao centro quando Renan Salotto — diretor criativo da Amarelo Verve, com a qual Mann trabalha há anos — deu a ideia do título. “Falei: ‘Tá de sacanagem’. Já tinha uma canção com esse título”, conta o compositor. A música, então, teve que ser puxada para o repertório.

O álbum traz seis inéditas e três canções previamente lançadas. Mann abre o álbum com três da nova safra, escritas de 2022 pra cá: “Lá vou eu de novo”, “Ai ai te procurava”, “Fica essa canção”. As três faixas previamente lançadas — “O amor nasceu mulher”, “O sol continua a brilhar” e “Ponte aérea” — se articulam com “Entre o céu e o pé no chão”, “Gostando de alguém” e “Batucando”.

A ordem das canções desenha a narrativa do álbum. Assim, “Lá vou eu de novo” apresenta de saída a filosofia do presente: “O agora é tudo que a gente tem”. Em seguida, “Ai ai te procurava” traz o clima mais dançante do disco — um xote “meio psicodélico”, com sabor de reggae, gravado por Mann com Aline Paes. “Quando parei de procurar foi quando eu vi”, canta ele, como quem narra o próprio processo de perceber que a melhor pessoa para gravar a música com ele era Aline, amiga com quem já tocou tantas vezes.

Com melodia e arranjo que ecoam Roberto & Erasmo, “Fica essa canção” é o gesto de agradecimento — à história, ao outro, ao amor vivido. “Saudade vai falar por mim/ Quero bem a quem me fez feliz”. E, com serenidade madura, entrega: “Cê vai sentir vontade na sua liberdade?/ Eu sei, também vou sentir”. Já em “O amor nasceu mulher”, a gratidão ganha dimensão cósmica — não a uma mulher, mas a todas.

A sequência avança com “Entre o céu e o pé no chão”, gravada por Mann na companhia do amigo Ricardo Rito, em casa, como prenúncio de um desejo futuro: “Quero talvez fazer um próximo disco inteiro assim, com a limitação como pretexto pra explorar a criatividade”. Depois, “O sol continua a brilhar” reverbera a abertura do disco, no dueto do cantor com Luiza Boê: “O sol levanta e você canta/ A beleza do mundo exalta / E se alguma coisa falta / Banho de mar pra curar.” É talvez a faixa que melhor representa a presença de Mann como cantor: “Recebo muito esse feedback: ‘Tua voz traz tranquilidade.’ Ninguém fala ‘que vozeirão’, mas falam dessa paz. E essa música é isso”.

“Gostando de alguém”, única faixa só dele no disco, nasce de um momento íntimo.

No início do namoro, ele pegou o violão logo depois que a namorada saiu de sua casa e começou a tocar sem saber muito bem o que viria. Viu uma gaivota passar no céu e cantarolou, num exercício espontâneo de metalinguagem: “Gaivotas voando sem preocupação/ Está nascendo uma nova canção”.

“Ponte aérea” retoma o tom amoroso, com letra delicada: “Se a gente não pode ficar/ Bem juntinho, agarradinho/ Ai, que saudade louca/ Num beijinho coladinho/ Na sua boca”. Mann admite ter implicado com os diminutivos no início, mas se rendeu: “O Brasil é isso, como Vinícius de Moraes nos ensinou”. A faixa tem vocais de Júlia Vargas, que se junta a Aline e Luiza no time de cantoras que dialogam com Mann no álbum. “As vozes femininas combinam muito com minhas canções, que têm uma doçura do meu jeito de compor”, reflete o compositor.

O fecho vem com “Batucando”, mais lenta, com arranjo de cordas e atmosfera cinematográfica. Um samba de saudade do carnaval e do amor: “Estamos sós/ E o som de purpurina da tua voz/ Ficou batucando/ Batucando aqui dentro de mim”. Mann vê ali o disco terminando como um filme. “Ela não é triste. Tem uma nostalgia, me lembra Fellini. Ou essa coisa de terminar em fade out, meio “Dona Flor e seus dois maridos”, ela indo embora com eles. E tem esse carnaval que não é o da Ivete na Bahia, fritado. É um carnaval antiguinho, romântico, melancólico”.

A instrumentação do disco é plural, mas nunca dispersa. Foram quatro guitarristas diferentes, três bateristas, cordas, sopros, pífanos. O baixo se divide entre Mann e Alberto Continentino — que assina a produção de parte do disco, ao lado de Yuri Vilar. Se Yuri é o parceiro de longa data (“da minha bolha”, como define Mann), Alberto ampliou o horizonte: “Trouxe outra turma. Gente a que eu não teria acesso normalmente”. O piano elétrico, o clima setentista, as camadas de arranjo com Jorge Continentino,

Filipe Pacheco e Diogo Gomes dão densidade sem pesar. “A gente fez um xote meio maluco”, exemplifica Mann citando “Ai ai te procurava”. “Na mix, o Alberto botou delays, fez um troço entre o xote e o dub. Um golaço”.

O disco avança, portanto, com leveza, mas sem superficialidade. Afirma o presente, honra o passado, deseja o futuro — e faz isso com generosidade. “Produzir disco é uma desculpa pra estar junto de pessoas queridas”, diz Mann. “Entre o céu e o pé no chão” talvez seja isso: um gesto de comunhão, feito de encontros, de aceitação, de gratidão, de beleza, de leveza.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *