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Luiz Melodia tinha apenas 22 anos quando, em junho de 1973, lançou “Pérola Negra”

“Pérola Negra” – estreia fonográfica das mais prodigiosas da música brasileira. Protagonizado pelo jovem cantor e compositor, o álbum reunia dez faixas, das quais duas já haviam sido gravadas por intérpretes consagradas. Eternizada por Gal Costa em “Fa-tal – Gal a Todo Vapor”, show e disco de 1971, “Pérola Negra” surgia também na voz de Ângela Maria, em 1972. No mesmo ano, Maria Bethânia registrava “Estácio, Holly Estácio” no álbum “Drama”. Além dessas, o disco apresentava outras tantas canções que, posteriormente, figurariam com destaque em sua obra, como “Estácio, Eu e Você”, “Vale Quanto Pesa”, “Pra Aquietar”, “Magrelinha” e “Farrapo Humano”.

Musicalmente, o repertório surpreendia pela fusão de gêneros, ao transitar com propriedade pelo choro, samba, bolero, blues, rock, forró, soul, jazz – hibridismo incomum para um artista criado no bairro do Estácio, reduto seminal do samba carioca. Nas letras, o poeta do morro de São Carlos exibia estilo único de compor. Com prosódia particular, articulava versos dilacerantes em um caleidoscópico jogo de palavras. Dotado de extensão vocal, divisão rítmica, timbre singular, Luiz Melodia tingia seu canto de matizes improváveis.

Fosse trágico ou terno, irradiava intensidade. Por todos esses aspectos, o álbum “Pérola Negra” marcou com ineditismo e ousadia o cenário musical da década de 70. Se cabia ao artista desfrutar da liberdade criativa exortada pelo Tropicalismo, também havia de lidar com a censura imposta pelo regime ditatorial. O disco de estreia de Melodia não passou ileso, tendo versos deliberadamente cortados e duas faixas excluídas, o que determinou a sua curta duração – menos de 28 minutos. Embora não tenha sido um sucesso comercial na época do lançamento, o tempo se encarregou de colocá-lo no topo. Presença constante nas listas de melhores discos brasileiros, os anos só confirmaram a relevância de “Pérola Negra”.

Com o intuito de celebrar o cinquentenário do álbum, a Universal Music lança “Pérolas Negras – Um Tributo a Luiz Melodia”, projeto concebido pela companhia, que faz hoje (6) o lançamento do EP e dos singles avulsos, com adesão de Jane Reis, viúva do artista que nos deixou precocemente aos 66 anos, em 2017. “Participei desde o começo, conversando muito sobre repertório, artistas, e todas as escolhas. É bonito ver pessoas especiais cantando, compreendendo, com tanta propriedade e com a clareza que permeia o trabalho. A vida é isso: um colaborando com o outro e deixando a marca. Falando da força e da dificuldade de ser. Foi muito difícil, mas muito proveitoso pra ele – e como vemos, pra todos”, reflete Jane. “Espero que tenhamos mais, porque o Luiz tem muito a ser mostrado.”

O tributo começou a tomar forma ainda em 2023 com a entrada de Mahmundi, convidada a assumir a direção e produção musical. “Luiz Melodia é uma preciosidade, sinônimo de beleza, riqueza, poder. Achei chiquérrimo o projeto”, diz a compositora, cantora e multi-instrumentista carioca. “Por estar diante de um álbum emblemático, sabia da responsabilidade de realizar novas versões e com artistas que a gente ama”, referindo-se ao time de intérpretes formado por Anelis Assumpção, Criolo, Liniker, Mart’nália, Sandra Sá e Zezé Motta, além da própria Mahmundi.

O elenco carrega afinidades e conexões variadas com o álbum e com o homenageado. “Ouvi o disco em 2000, em uma festa de rua no Grajaú (bairro paulistano). ‘Pérola Negra’ é incrível, com músicos incríveis, e ele, Luiz Melodia, deixando tudo mágico”, rememora Criolo. Na lembrança de Mahmundi, vem a música que ouvia nas ruas de Marechal Hermes. “Fui ouvir o álbum tempos depois.

O repertório é todo lindo, muito profundo, e tem uma coisa do Rio de Janeiro ali, em cada canção.” Mart’nália conta que conheceu o disco quando era adolescente. “Minha mãe gostava muito dele e tive contato assim que lançou. Lembro de ter ficado comovida pela força e limpeza da voz do Melodia.” Liniker ressalta que Luiz Melodia teve um impacto na sua família, não só pelas canções. “Por sua elegância, ele chegava nesse lugar em que o preto no Brasil não era vinculado, de ser chique, bem vestido.” Anelis Assumpção revela que “Pérola Negra” esteve presente desde a sua infância: “Esse disco entrou na minha vida muito cedo por conta do meu pai (Itamar Assumpção), que tinha uma ligação íntima com o Melodia. Dois gigantes da música brasileira, geniais e marginalizados.” Também próximas de Luiz Melodia, Sandra de Sá e, mais ainda, Zezé Motta já haviam gravado composições do amigo.

Na concepção musical do tributo, Mahmundi contou com um “fiel escudeiro” na coprodução: o músico e compositor Josefe. As seis faixas selecionadas receberam instrumentação enxuta e arranjos que, embora distantes do registro feito em 1973, preservam a essência de cada canção. Mahmundi e Josefe arregimentaram músicos que pudessem contribuir com essa proposta. “A gente montou um time de pessoas que entendem a linguagem brasileira de violão e percussão.

Daí eu trouxe o Webster Santos, violonista que costura o projeto inteiro, já que o violão está em quase todas as faixas. Na percussão, chegamos no Kabé Pinheiro. No piano, tem o Samuel Silva. E partiu muito do Josefe a ideia do Ivan Sacerdote com o clarinete em uma única faixa, ‘Pérola Negra'”, conta Mahmundi. Ela e Josefe também colaboraram como instrumentistas, entre piano, sintetizador e baixo synth. “Queria imprimir um pouco do álbum original, trazer essa lucidez, até para que os artistas pudessem vestir a roupa da canção e interpretar do jeito deles”, completa a diretora, que fez questão de ambientar o estúdio com uma seleção de vídeos do Luiz Melodia. As seis faixas ganharam registro audiovisual, gerando um documentário a ser lançado em breve.

É Criolo quem inicia o tributo, cantando a faixa-título, “Pérola Negra”. Em tom intimista, ele mergulha no blues e flutua nas incertezas da letra que diz “Baby, te amo, nem sei se te amo”. Para o cantor, a gravação foi “muito serena”. “Coloquei voz valendo, no mesmo set de filmagem. O contexto de estar com aquela equipe foi muito especial, ver meu povo lindo produzindo coisas lindas.”

Mart’nália vem a seguir com “Estácio, Eu e Você”, brejeira como ela só. Bem à vontade nesse samba-choro, parece imbuída da mesma emoção que atravessava os encontros com Melodia. “Foram todos marcantes, com muita resenha. Ríamos e nos abraçávamos muito, papo de vascaínos”, recorda a cantora, sorrindo.

O bairro onde o poeta cresceu também é cenário de outra canção, “Estácio, Holly Estácio”, aqui abraçada pela voz de Mahmundi. “Melodia tem uma sutileza ao falar dos sentimentos do coração, ‘fico manso, amanso a dor, holiday é um dia de paz, solto o ódio, mato o amor’, essa letra é linda”, sublinha. A intenção era vestir a faixa de latinidade. “Quis fazer um bolerinho brasileiro, e como eu cresci! Josefe me ajudou bastante a achar o modo de contar essa história.”

“Pra Aquietar” deixa o rock da gravação original e cai no suingue com Sandra de Sá na levada do samba. É nessa letra que Luiz Melodia foi censurado e, por pirraça, inventou versos como “não posso pra lá paraguaio para”. Sandra também improvisa e sugere “desligar o segurador de onda e curtir”, e ainda finaliza com versos de “Juventude Transviada.”

O dueto de Anelis Assumpção e Zezé Motta traz à tona a pungente emoção de “Magrelinha”. Marcada pelo piano de Samuel Silva, a faixa caminha num crescente que culmina com as duas vozes entrelaçadas. “Conheci ‘Magrelinha’ antes de conhecer o disco. Eu era muito magra, meu pai [Itamar Assumpção] cantava essa música e dizia que fez pra mim. Só depois descobri que era do Melodia e virou uma piada familiar”, conta Anelis. Gravada por Zezé Motta em seu álbum de estreia, em 1978, a canção é definida por ela como “grandiosa”.

Coube a Liniker legitimar o acento soul de “Vale Quanto Pesa”. A sexta e última faixa do tributo ainda vagueia pelo blues e bolero. “Sou forte feito cobra coral / semente brota em qualquer local / um velho novo cartão postal”, diz a letra. A cantora se reconhece na poesia de Luiz Melodia: “Ele pode ser muito direto e, ao mesmo tempo, é um cara que sempre construiu imagens em tudo que escreveu”.

Modernidade e tradição. A combinação, lapidada por Luiz Melodia de forma magistral em seu disco de estreia também pauta as seis faixas que compõem esta homenagem. Cinquenta anos depois, as releituras de “Pérolas Negras – Um Tributo a Luiz Melodia” estão prontas para fazer morada.

No coração.

No coração do Brasil.

Lorena Calabria

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